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domingo, 15 de janeiro de 2012

O socialismo para o século 21

François Houtart*

Antes de ser um conceito, o socialismo é um projeto. Por esta razão, é necessário abordar seu conteúdo como um passo preliminar para utilizar esta palavra. De fato, o que é o socialismo hoje? O processo de ambigüidade em que vivemos exige um novo quadro de reflexão.
Há uma grande urgência diante à destruição social e ambiental provocada pelo modelo econômico atual. A hegemonia global do capitalismo, em sua forma neoliberal, não foi construída apenas sobre bases materiais (as tecnologias de informação e de comunicação) mas também com a subordinação do trabalho ao capital e outros meios financeiros. Preços de matérias primas e de produtos agrícolas, dívida externa, paraísos fiscais, normas de organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, e a Organização Mundial do Comércio (OMC), são prova disso .

Esta subordinação afeta a todos os grupos humanos tanto pela destruição ambiental, como pela submissão à lei de valor. Atualmente, povos indígenas sofrem com a exploração das matas e a destruição da biodiversidade; mulheres são as primeiras vítimas da privatização da saúde, da água, da eletricidade; famílias camponesas são afetadas pelas empresas transnacionais do agronegócio. A vida da humanidade em seu conjunto está ameaçada.

Por estas razões, um novo projeto deve começar pela deslegitimação clara e radical do capitalismo, em sua própria lógica e em seus aspectos concretos. A consciência de que não se pode humanizá-lo constitui a base da alternativa que defendemos e acreditamos.

Objetivos da utopia
Existe uma ligação fundamental entre a natureza e o ser humano. A natureza é fonte de vida. Não se pode agredi-la e nem destruí-la sem ir contra a vida das pessoas. A natureza não pode ser explorada em função de uma racionalidade puramente instrumental, característica do tipo de modernidade vinculada ao capitalismo. O grito da terra, como escreveu Leonardo Boff, se mostra presente hoje com a desertificação, a deteriorização do clima, gripe aviária, aids.

Dentro da lógica capitalista, o mercado domina não somente atividades econômicas, mas toda a organização coletiva da vida humana. Para o capitalismo não existe valor econômico, se o trabalho, os bens e serviços, não se transformarem em mercadorias. Mulheres e homens estão submetidos à esta lei que invadiu a realidade social, submetendo toda a humanidade à logica do capitalismo. É por isso que Karl Polanyi, economista estadunidense, defende a necessidade de se reinserir a economia na sociedade.
A participação democrática, ou melhor, o poder de decisão do sujeito humano, não pode ser limitado ao setor político. Neste sentido, se pode dizer que toda a realidade é política, começando pela economia. O princípio de participação democrática tem que ser aplicado em todos os níveis da vida humana coletiva, do local até o global.

Os meios
Para realizar o primeiro princípio de uma utilização renovável da natureza, podemos propor três meios principais. O primeiro é a apropriação pública dos recursos naturais essenciais para a vida, como a água, as sementes e o ar. Eles constituem o patrimônio da humanidade e devem escapar da lei de valor, tal como está definida pelo sistema econômico capitalista.

A valorização da agricultura camponesa é outro meio necessário. Se trata de lutar contra a concentração produtivista da terra ou de produtos agrícolas em mãos de empresas transnacionais que destróem a natureza, sem falar dos desastres sociais que provocam.

Existem diversos meios para que o valor de uso predomine sobre o de troca. Um deles é promover uma produção orientada para a maioria das populações, através da utilização de instrumentos públicos que se oponham ao modelo de desenvolvimento atual, que favorece apenas o crescimento econômico de 20% da população. Outros caminhos: limitar a influência do capital financeiro através de um imposto sobre os fluxos internacionais; abolir os paraísos fiscais e acabar com a dívida externa dos povos do Sul.

A democracia, que não é somente um fim, mas também um meio, também está inserida neste processo. Neste sentido, ela deve se estender a todos os níveis da atividade coletiva, incluindo o setor econômico. Entretanto, é preciso também promover a democracia participativa ou direta como um incremento do controle popular nos diversos setores. Não se trata só de dimensão territorial (povos, bairros, aldeias), mas de empresas e administrações.

As estratégias
Para conseguirmos nosso objetivo é preciso deslegitimar o capitalismo como expressão de uma modernidade desumanizante. Isso significa utilizar todos os espaços possíveis para o desenvolvimento crítico dos setores da economia, ecologia, política e cultura. Neste sentido, os fóruns sociais cumpriram um papel importante no desenvolvimento progressivo de uma consciência coletiva.

Outro ação fundamental é acelerar a criação de atores coletivos em nível global, através de redes como a Via Campesina.

Renovar o campo político da esquerda com a convergência de várias organizações políticas (não se pode pensar em um único partido detentor de toda a verdade) e a centralidade da ética em práticas políticas também é urgente.

Promover a emergência de um novo sujeito histórico que não será constituído apenas por trabalhadores assalariados, mas por todos os grupos afetados pelo sistema capitalista como camponeses, mulheres, povos indígenas, quilombolas. Buscar a centralidade da ética como atitude coletiva e individual, em coerência com a utopia, implica em uma institucionalização dos processos sociais e políticos.

Concluímos que se é tudo isso que chamamos de socialismo, ele se trata de um projeto profético e construtor. Somente ele é capaz de contradizer a barbárie e se traduzir em um plano pós-capitalista em defesa da dignidade humana e do amor ao próximo.

* Nascido na Bélgica, François Houtart é sacerdote, sociólogo e presidente do Fórum Mundial de Alternativas

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